domingo, 4 de abril de 2010

Sem Pio (UPDATED)

Bem, aqui está a versão melhorada da curta que fiz o ano passado e da qual já tinha mostrado e falado aqui.

As principais modificações estão, já havia referido, no som. Regravei a voz, entreguei-a ao meu belo e espadaúdo amigo, [paulo] Melancia, como está referenciado nos agradecimentos finais, e ele editou-a de forma sublime. No entanto, não está mais máscula, razão pela qual lhe cortei um braço.

Sem mais delongas, aqui fica o renovado SEM PIO! (a segunda parte ficou no dailymotion, porque os senhores do youtube rejeitaram-me devido aos direitos de autor...)

Parte 1



Parte 2


Sem Pio - Parte 2
Enviado por spiderfoo. - Temporadas completas e episódios inteiros online


GUIÃO:

Foi fogo. Sim, foi fogo que acordou o rastilho para a tua suave eclosão. Em tons de amarelo surgiste e em incolor nevoeiro em mim perpetuaste. De delicado feno criaste o ninho em que nos tornámos eternos. Mas afinal, nada é eterno. Para sempre vivemos. Mas para sempre foi um instante. Nada perdurou. Tudo acontece no tempo de um cigarro. E tu aconteceste numa baforada.
Não pergunto ‘porquê tu?’. Todos vamos desaparecer um dia, mais tarde ou cedo. Pergunto antes ‘porquê a mim?’. No meio de tanta gente, porquê logo eu? No meio de tanta tragédia, porquê escolher logo este desgraçado? Que deserto este em que me deixaste que nem oásis de ti despontam. Que deserto este que nem o sol quer aparecer e sozinho eu merecer estar.
Podíamos ter sido mais. Ter ido onde nunca ninguém me levou. Mas num voo picado, sem esteira nem rede, sem cama nem colchão, foste onde não te posso trazer de volta. E eu… eu… que podia eu fazer? Se ainda aí estiveres, desculpa-me.
Não há garrafa que valha o que não fiz por ti. Mas aquela garrafa… tinha que ser aquela, apenas aquela. Aquela garrafa custou o teu adeus. Podia ser mais um desencontro de ideias ou uma dissertação de erros meus. Mas não. Foi apenas aquela garrafa. E aquela luz. E aquele travão. Que me travasse antes a mim…
Voavas sem parar, sonhando ou não. Mas logo naquele dia tinhas que experimentar o conforto de um Astra. Logo comigo é que tinha que acontecer. Afinal, que mal assim tão grande fiz eu, Deus? Deus? Que Deus… que Deus este rouba os seus mais perfeitos filhos no despoletar da vida! Que Deus este que nos cortou como um folha velha. Que nos queimou como um tronco seco. Que nos rasgou como… como… Era apenas uma garrafa, duas no máximo, iguais a tantas outras…. E pagaste tu por isso. Agora cobro eu essa conta. Conta duma morte que eu próprio encomendei, mesmo sendo outra mente que possuía o meu corpo. Outra mente e duas garrafas. Só duas. E não foi a falta de aviso. Bem me dizias que elas ainda nos iriam matar aos dois. Poucas vezes havia erros nas tuas palavras, mas as metáforas nunca foram o teu forte. Já eu usava-as para dissimular todas as vezes que as garrafas me tocavam. Era esse o meu forte e não as minhas músicas, como tu tanto defendias. Eras a única a ouvi-las. Eram só tuas, pois para mais ninguém tocava. Num só acorde e a tua atenção era só minha. Soltava um Sol, já te tinha a meus braços. Alternava entre um Dó e um Fá e a noite era nossa. Ao fim de um Mi a melodia envolvia-nos e entre Rés e Sis pairávamos sobre o nosso reino sagrado. O nosso ninho. Com um dedilhado de Lá matei-te. É neste enredo sem regras que os mais fortes perecem e os mais fracos se juntam à volta da fogueira e se enaltecem em bélicas melodias.
Não fomos criados para viver nesta era. Nunca serias escrava de ninguém nem gladiadora para ninguém. Nunca serias plebe nem povo. Não! Noutra era serias Spartacus ou Leónidas. Serias a voz de uma nação como foi William Wallace. Não serias Cleópatra, porque ela cairia a teus pés. Na nossa era, apenas tiveste tempo de salvar uma putrefacta alma que para te agradecer, te cortou o pio. Com que direito? Se alguém tem o direito de excluir do nosso presente, que sejas tu. Tiravas-me um fardo de cima, já que o de te perder não sossega.
O difícil que é ter-te apenas na recordação e não te poder materializar. Mais difícil é não te poder mais ver pelos céus, posando em nuvens de veludo e acariciando-me com palmas de ceda. Eras feita de casca de ovo. O que nos riamos por causa disso. Tão frágil para tanto tamanho. Preenchias-me de tal forma que pensei clonar-me, porque não havia mais espaço dentro de mim, de tanto que ocupavas. E agora? Desapareces e permaneces em mim? Quão justo pode ser? Mas afinal, o que é a justiça na morte? É uma criança morrer a brincar no jardim e um terrorista sobreviver no meio de explosões? Se há justiça neste presente, ainda está para chegar dum futuro ainda sem sombra.
Porque é que não passa? Esta dor intensifica-se a cada lufada de ar e já me agonia o pensar em respirar. Cada vez sinto menos vontade de o fazer. É como agulhas que se cravam pelo corpo adentro, tatuando um horrendo ardor que nem o frio polar conseguirá cessar. O mal que me fazes. Contigo aprendi a sorrir quando me apetecia fugir de tudo. Não fossem aquelas garrafas e podias tentar mais uma vez. Mas agora, se sorrir, desvaneço. Puxo um cigarro e logo a seguir vem outro, sempre à espera que me peças para largar isto de vez. Mas este sempre transformou-se numa eternidade e tu nunca mais me pedirás tal coisa. Apenas o vento me lembra que ainda sinto. Levaste contigo tudo o que de mim restava e agora sou um saco vazio, outrora recheado de compras, hoje voando ao sabor do vento. Ao menos que te encontre numa nuvem. Mas não estás lá. Eu fiz com que nunca mais estivesses. Para me lembrar de ti, incendeio-me em mais um cigarro e penso no bem que me fazias evitando que eu o fumasse. Já viste isto? Já só falo de ti no passado. Mas cada vez mais sei que és futuro.
Enquanto vou pela estrada, imagino o tipo de pessoa que serei sem ti e a minha única salvação está na gentileza de um atropelamento. Mas a cena não se afigura na minha cabeça. Sabes que nunca gostei de dar nas vistas. A caminho de casa lembro-me que estou com fome, e a ideia de saltar refeições parece-me à primeira vista a saída desta prisão. Mas chegaria mais rapidamente ao inferno na terra do que às nuvens contigo. Tento livrar-me destes pensamentos, mas foste tu que começaste. Sabes que a morte sempre me assustou, mas agora apenas a tua ausência me atormenta e a morte não passa de uma mosca. Estou mais que cansado e uma cama fazia-me bem. Mas tu estives lá. O cheiro continua intenso e consigo mesmo ouvir a tua voz. Então, porque raios não te sinto?
O caminho até ti parece encurtar-se, mas a estrada continua longa e não sei se é uma jornada que eu queira fazer. A reflexão é madrasta mas a tua ausência também. A escolha é minha.
Até já, meu amor.

1 comentário:

UmFrutoPeculiar disse...

Brilhante.
Obrigado pelas palavras. Não está assim tão sublime! Sublime estão os efeitos que colocaste e o guião... O guião...!